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sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Fatos e fotos

 

“O DURO PREÇO DO MEU TEMPO”

Autor: Artur da Távola

Publicado em 10.08.1975 no  Jornal “O Globo”

 No dia 10.08.75, caminhando para a minha maioridade (21 anos) nasci em 31.08.54, li o seu artigo publicado no Jornal. Achei fantástico, recortei-o e guardei.

Hoje próximo a completar 67 anos, revirando minhas pastas de artigos, reencontro o seu artigo já um pouco amarelado pelo tempo (46 anos), porém atualíssimo.

 “O duro preço do meu tempo” é saber que o tempo não existe e sim o passar do tempo, pois passamos a vida fazendo planos e planos e não percebemos que a vida vai passando, os filhos  que eram crianças agora são adultos, são universitários, já trabalham, tem idéias próprias, fazem planos, alimentam sonhos. Portanto meu grande escritor gostaria  que se possível você reeditasse o seu artigo para a nova geração de leitores:

 “Eu gostaria que este artigo fosse lido daqui a cem anos. Seria um testemunho, pobre testemunho de um alguém que à época será pó e silêncio, talvez paz fluídica integrada no cosmos.

E mesmo esta absurda pretensão de durar em letras cem anos, é com base no que fiquei pensando por causa de algo efêmero e passageiro: alguns  personagens  da novela, forma que será lembrada como pioneira e rudimentar pelos comunicadores de então. Os personagens eram os jovens  “Mel, Regininha e Nando” de “O Clone ”. Eles me serviram de símbolos para uma coisa que o homem de hoje não percebe: é sempre a criança quem paga.

 Falo do homem e seu delírio no mundo inteiro neste início de século. E falo de séculos atrás pois assim sempre foi. Ele se agita, pensa, age, escreve, faz, sonha, pede, destrói, reclama, constrói, anseia, crê, mas é sempre a criança quem paga. Sempre! O preço de tudo o que ele faz. No macro das sociedades, no micro de cada pessoa.

 Saibam, homens de 2.102, que a criança era o animal mais forte há cem anos atrás. Ela a tudo resistia e resistiu. Ela prosseguiu apesar da gente.

O pai é nervoso, tenso e sobrecarregado? É a criança quem paga.

           Sua mulher, uma jararaca? É a criança quem vai pagar.

 Vocês brigaram? A criança pagará.

 Não brigaram, mas o desamor os afasta embora vivam juntos? Ela percebe, sabe, sente e pagará.

 Você é bacana, fazedor, desbravador, não tem tempo para nada? Rejubile-se: é seu filho quem vai pagar. ...

 Violento? Banana? Potro selvagem? Encucado? Posso lhe garantir que é a criança quem vai pagar.

      A mãe também trabalha, os dois batalham, é tudo culpa da luta pela sobrevivência? Vocês estarão dizendo uma verdade, mas é a criança quem vai pagar.

          Você prefere ter um filho apenas por amor à maternidade ou para mostrar “que é livre”? Pode ter, irmãzinha. Por que não, se será ele quem pagará quando passar a ilusão do filho a qualquer preço?

           Você se casa por amor? Depois ele vai passar? Deixe-o passar. Quem vai pagar não é você, é a criança.

       Casou-se sem amor? Foi um erro, engano, paixão brutal e passageira, vontade apenas de botar um vestido e viver a fantasia arquetípica de ritos e imemoriais? Não há problema, princesa: quem vai pagar é a criança.

      O homem endoidou e resolveu destruir o espaço, a árvore, o pássaro e encaixotar você? Quem é que tem? Compre o caixote feliz: é a criança quem vai pagar...

           Invadiu calçada com automóveis, ocupou as praças para mil coisas, construiu mil canos grossos e finos para expelir fumaças? Por que se importar se é a criança quem vai pagar? O louco gerou as guerras, as bombas, a fome, a doença? Todos pagaremos, é certo, mas o preço das crianças vai ser maior e mais brutal: o da vida impedida de ser.

       Aquele seu líder pede sangue e você o aplaude? Aplauda à vontade, pois é a criança, qualquer criança, a dos prós e a dos contra seu líder, a que vai pagar.

      O homem se divide e se mata por causa de formas pueris de implantar a felicidade na terra. Embarque nessa ilusão tranqüilo: é a criança quem vai pagar. Coletivismo? Individualismo? Sistemas certos? Modelos infalíveis (até falharem)? Aceite-os! É a criança quem vai pagar.

         A gaita acabou? A saúde pifou? “Tenho que viver minha vida porque o tempo está passando”? Viva, maninho! É a criança quem vai pagar.

       Você adora queijos especiais mas acha o colégio caro? Coma queijos, entupa-se deles e de roupas, compra perfumes, carros, motocicletas, viva o supérfluo seu e dos outros até o final. É a criança quem vai pagar.

      Você é bonita? Você é bonito? Que inteligência! Exiba-a, milhões lhe aplaudirão. Faça os investimentos necessários a si mesmo, você vale a pena! Dedique tempo à sua (minha, tua, nossa, vossa, deles) glória. Faça tudo isso tranqüilão: é a criança quem vai pagar.

    Você não ouve, só se sente, só se sofre, só se entende, emite, sabe, ensina, põe, dispõe, manda, blasona, se omite, infla, se entope, entorna, sofre, cala, fala tudo, “não tenho papas na língua”, “comigo é assim”, “sem essa”, “que se dane”, “ele tem que aprender”, “vai ser o que eu quiser”, “deixa ele em paz”, luta por manter seus valores de vida, os impõe no peito e na raça? Você é livre para isso! Mas saiba que é a criança quem vai pagar.

 Venho de um tempo e de um mundo onde a loucura do homem só foi possível porque havia alguém mais forte que ele, tanto que sobreviveu: a criança. Um dia olharão meu tempo lá do futuro e se perguntarão perplexos: como pôde a criança permanecer? Que germens de futuro tinha ela para mesmo assim prosseguir e salvar o mundo?”

 

Luiz Carlos Ferreira – (LUCAFE)

 São João Del Rei – MG

14.01.21

 





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